Há 30 anos o futebol perdia Garrincha

20 / 01 / 13

Jogador faleceu vítima de complicações causadas por uma cirrose

O dia 20 de janeiro de 1983 tinha tudo para ser de uma festa da fé, abençoada por São Sebastião, mas uma tragédia deixou o mundo do futebol e o Brasil, de forma geral, inconsoláveis. Morria Manoel Francisco dos Santos. O caçador de passarinhos, o Anjo de Pernas Tortas, o único jogador capaz de fazer a superfície de um lenço parecer um latifúndio, como bem descreveu Armando Nogueira. Um homem simples de Magé, interior do Rio, depois de 49 anos cheios de altos e baixos. Naquele 20 de janeiro, o Brasil e o mundo perderam Mané Garrincha.

Ídolo máximo do Botafogo, clube no qual viveu seu auge, e bicampeão mundial com a Seleção Brasileira, o jogador acabou derrotado pelo único marcador no qual não conseguiu aplicar o drible que o imortalizou mundialmente: o álcool. Faleceu vítima de complicações causadas por uma cirrose.

O craque nasceu em Pau Grande, distrito de Magé, na Baixada Fluminense, em 28 de outubro de 1933. Criança levada, gostava de caçar passarinhos. O alvo preferido eram as garrinchas, aves abundantes na região, que lhe renderam o apelido e o primeiro caso curioso. Em seu primeiro treino como jogador do Botafogo, em meados de 1953, houve uma intensa discussão entre os jornalistas presentes sobre a grafia de sua alcunha. Botafoguense fanático, o cronista do Jornal do Brasil Sandro Moreyra, na época ainda trabalhando para o “Diário da Noite”, decidiu batizá-lo de Gualicho, nome de um famoso cavalo de corridas, que vencera o Grande Prêmio Brasil daquele ano. A tentativa, porém, não passou disso, uma tentativa. Como todos viram, o que prevaleceu foi o apelido de infância.

A trajetória futebolística de Garrincha até a primeira oportunidade profissional, porém, teve muitas idas e vindas. O ponta-direita atuou, como amador, por Pau Grande e Serrano, e foi rejeitado em diversas “peneiras”. No Vasco da Gama (1950) nem chegou a treinar, pois deixou a chuteira velha e rasgada em casa, com vergonha. Em 1951, não foi aproveitado pelo São Cristóvão e desprezado pelo Fluminense.

Tudo mudou em março de 1952, quando o lateral-direito Iraty, do Botafogo, foi convidado para apitar uma partida entre o Pau Grande e a União dos Bancários de Cavalcante. Naquela “pelada” o futuro companheiro se encantou com o ponta franzino de pernas tortas que marcara nada menos que cinco gols e desmoralizara a defesa rival com dribles desconcertantes. Empolgado, mandou Garrincha procurá-lo no estádio do Botafogo. O então aspirante a jogador agradeceu e prometeu ir, mas jamais cumpriu o combinado.

Contudo, o encanto do lateral alvinegro foi suficiente para estimular Eurico Salgado, um sócio do clube, a ir conferir o tal fenômeno de pernas tortas na Baixada meses depois. Após acompanhar três partidas, não teve mais dúvidas e levou Garrincha consigo ao clube de General Severiano. Após dois dias de treino – e não um, como convencionou a lenda – ele foi contratado para o time profissional do Botafogo. Os jornais já tratavam com alarde o ponta-direita, tido e havido no clube como futuro craque.

A partir daí, construiu nos campos a história que o país inteiro conhece: driblador endemoniado, artilheiro – terceiro maior goleador alvinegro em todos os tempos – e, ao mesmo tempo, solidário, sempre deixando os companheiros na cara do gol. Mas, acima de tudo, era um artista, um comediante da bola. Ou um enviado divino, como escreveu no JB Carlos Drummond de Andrade dois dias após sua morte, no dia 22 de janeiro de 1983: “Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios”.

Garrincha não parava: conquistou títulos pelo Botafogo e brilhou com a camisa da Seleção. Em 1958, foi engrenagem de uma das maiores equipes de todos os tempos. Mas sua obra-prima foi escrita no Chile, em 1962. Sem o companheiro Pelé, ao lado do qual nunca perdeu um jogo sequer, assumiu o papel de solista e, para muitos, teve a maior atuação individual da história dos mundiais, levando o Brasil ao sonhado bicampeonato.

Foi lá também que conheceu a cantora Elza Soares, grande amor de sua vida, com quem viveu um romance tórrido e teve que enfrentar a ira da sociedade carioca, que não aceitava a escolha de separar-se de Nair, a humilde mãe de seus filhos em sua terra natal, para viver ao lado de uma estrela da música.

Por ironia do destino, talvez, seu apogeu deu-se imediatamente antes de sua queda. A partir de 1963, o gênio entrou em crescente litígio com o Botafogo, pois achava que recebia menos do que merecia. Acreditava que deveria ganhar o mesmo que Pelé e, no entanto, recebia um salário menor até mesmo que o jovem companheiro de time Amarildo. Ao mesmo tempo, os problemas crônicos no joelho, frutos de uma artrose, começavam a lhe prejudicar o desempenho em campo. A partir daí, Garrincha nunca mais foi o mesmo. Vivia envolto em sessões de fisioterapia, diversos outros procedimentos médicos e em punções.

Chegou a disputar a Copa do Mundo de 1966, mas sem condições físicas, atuou em apenas dois jogos e não conseguiu evitar a eliminação precoce do time. Bebia cada vez mais e enfrentava turbulências na vida pessoal.

Ainda teria curtas passagens por Corinthians, Flamengo e Olaria, insistindo em continuar tentando a vida de jogador de futebol até 1972, quando se aposentou. Um ano depois viveu seu último momento consagrador nos gramados. Sua despedida – o Jogo da Gratidão – reuniu nada menos que 131.555 pagantes para ver pela última vez o maior ídolo que o futebol carioca tivera até então.

O confronto foi entre a Seleção Brasileira campeão do mundo em 1970 – sem Gérson e Tostão, mas com Mané na ponta-direita – que enfrentou um combinado de estrangeiros. Aos 30 minutos do primeiro tempo, o árbitro Armando Marques parou o jogo para que Garrincha desse sua última volta olímpica no estádio que fora seu maior palco, arrancando lágrimas de milhares de pessoas que, por quase duas décadas, se acostumaram a acompanhar sua genialidade nos campos de todo o país.

O jogo não foi apenas uma despedida, mas também serviu para aliviar a complicada situação financeira do craque. Ele embolsou parte da renda, cerca de 1 milhão de cruzeiros (à época, US$ 166 mil), fora as doações que recebeu de muitos desconhecidos.

Afundou-se cada vez mais na bebida até que chegou ao fim seu casamento com Elza Soares, em 1977. Pouco tempo depois, mudou-se para a casa de Vanderléa, a última companheira, em Bangu. Foi no bairro da Zona Oeste que viveu até seu último dia, entre uma internação e outra.

Herdeiros da camisa 7 reverenciam Garrincha

A figura de Mané ficou de tal forma enraizada no Botafogo que, até hoje, a camisa 7, e não a tradicional 10, é destinada ao craque do time. A simbologia é resumida em uma famosa frase: “no Botafogo, 7 vale mais que 10”.

Primeiro ídolo alvinegro a honrar essa tradição, Jairzinho, ponta-direita como o antecessor, conta como era conviver com o ídolo de infância:

“Para mim, Garrincha foi um dos maiores presentes que recebi na vida, como homem e como atleta. Eu fui criado na Rua General Severiano, a 100 metros do campo do Botafogo, e sempre ia ver o maior jogador de todos os tempos da história do futebol brasileiro e mundial. Quis o destino que, na sequência, eu também tivesse a oportunidade de jogar ao lado do meu ídolo. Eu era ponta-direita por causa do Garrincha. Todos queriam ser, por causa dele”, relata.

Emocionado, o Furacão da Copa lembra também da relação de amizade com o mentor, com quem conviveu em seus primeiros anos de carreira:

“Era um cara amigo, comunicativo e sem maldade. Ele tinha uma certa inocência do profissionalismo que ainda não era totalmente enraizado no Brasil. Ele não teve nada de indisciplinado, e sim inocência do compromisso do que era ser um jogador de futebol. E mesmo assim fazia a diferença. Chegava lá no campo e botava 180 mil pessoas, inclusive torcedores do Vasco, Flamengo e Fluminense, para aplaudi-lo. Era diversão garantida com Garrincha, a Alegria do Povo. Ele foi um mito, brasileiro e mundial”, conclui.

O ex-atacante Maurício, autor do gol que deu fim ao jejum alvinegro de 21 anos sem títulos em 1989, não chegou a conviver com Garrincha, mas, ainda sim, através de Nilton Santos, vivenciou na pele a importância do maior ídolo alvinegro, de quem também era fã. A experiência se deu pouco antes de entrar em campo para a célebre vitória contra o Flamengo, na final do Campeonato Carioca daquele ano:

“Garrincha foi muito importante na minha vida, inclusive naquela famosa decisão de 1989. Eu estava febril, não estava muito bem. Encontrei, no vestiário, o Nilton Santos, e ele falou pra mim: ‘Eu sei que você está febril, eu sei que você não está passando bem, mas fique tranquilo porque Mané Garrincha vai estar com você’. E você viu o que que deu: 1 a 0, gol meu, fim de 21 anos sem título. Aquilo foi a alforria do Botafogo. Pra mim, isso ficou marcado. Nilton Santos, um mito do futebol, dizendo que o meu ídolo estaria comigo. Foi sensacional”, recorda.

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