Bob Marley completaria 70 anos

07 / 02 / 15

Relembre a carreira do rei do reggae e entenda como ele se tornou o porta-voz oficial da mensagem de paz e amor da filosofia rastafári

Não se pensa em reggae sem pensar em Bob Marley. Nesta sexta, 6, ele completaria 70 anos, mas nesse tempo todo não surgiu outro artista que tomasse seu posto de sinônimo do gênero e grande divulgador da cultura rastafári.

Nascido em 1945, na Jamaica, Marley começou na carreira aos 14 anos, quando saiu da escola e passou a fazer música ao lado de um cantor local, Joe Higgs. Foi nesse período que conheceu Peter Tosh, que mais tarde seria seu parceiro no grupo Bob Marley & The Wailers.

Em 1966, casou-se com Rita, sua companheira ao longo de toda a vida e com quem teve cinco filhos, três biológicos e dois que eram dela, mas foram adotados por ele. Até hoje há controvérsias a respeito do tamanho exato da prole de Bob, que conta também com frutos de relacionamentos dele com outras mulheres. Foram reconhecidos como seus, oficialmente, 11 filhos, ao todo.

Dentre seus rebentos, os que talvez sejam mais conhecidos do público são Ziggy e Damian, que seguiram os passos do pai e investiram na carreira de musical, fazendo reggae.

Bob morreu aos 36 anos, em 11 de maio de 1981, vítima de câncer, em um hospital de Miami, nos Estados Unidos. Deixou em seu legado histórico 13 discos de estúdio (um lançado após sua morte) ao lado do Wailers e muitos sucessos cantados de cor e com facilidade por pessoas ao redor do mundo, como “No Woman, No Cry”, “Redemption Song”, “Jamming”, “I Shot the Sheriff” e “Is This Love”.

Arquivo RS Bob Marley – Leão Indomável
Por Ed McCormack

Em 1976, Bob Marley, o porta-voz oficial da mensagem de paz e amor da filosofia rastafári, estava prestes a deixar os domínios da Jamaica para tomar o mundo com a batida contagiante do reggae. Havia ainda, porém, muitas outras barreiras que precisavam ser vencidas

A primeira vez que me deparei com um número significativo de rastafáris e senti todo o impacto de suas selvagens e assustadoras cabeleiras – os dreadlocks – foi nos estúdios de Tommy Cowan, em um prédio com parede de reboco e cercado por barracos na área norte de Kingston, Jamaica. Seis ou sete rastas e três convidados brancos se amontoavam em uma sala cheia de fumaça de maconha, ouvindo o novo single “Babylon Queendom”, do ex-guitarrista do Wailers, Peter Tosh.

Tosh apareceu no estúdio vestindo uma camiseta escrito “Legalize It” (um item promocional de sua música de mesmo nome – banida das rádios, mas disponível nos guetos em qualquer camelô), com seus dreads revoltos e cannabis o suficiente em seu cachimbo estilo Sherlock Holmes para garantir uma sentença capaz de mantê-lo na prisão até o dia em que a Babilônia resolvesse finalmente cair. Em suma: um rasta até os ossos.

No meio dos anos 1960, Tosh, Bob Marley e Bunny Livingstone formaram o grupo mais popular da ilha no gueto de Trench Town, quando ainda se chamavam Wailing Rudeboys. No estúdio, Tosh conversava com Gregg Russell, um jovem calado com um dread espetado saltando bem do meio da testa, como o chifre de um rinoceronte. Como muitos rastas que fumam a erva como se fosse sagrada, Russell parecia estar em um estado de coma.

O único que parecia “menos rasta” ali era Tommy Cowan, um produtor grandalhão cujos dreadlocks relativamente arrumados não pareciam exatamente corretos, por assim dizer. Até Cowan jogar o punho para o ar junto com os outros e dizer “Jah Rastafar-I” com o mesmo fervor legítimo com que Tosh cantou “Babylon Queendom, take back your dollahs!” (“Reino da Babilônia, pegue seus dólares de volta!”).

Considerando que esses mesmos rastas estavam comprometendo seus princípios separatistas pelos desprezados dólares da Babilônia ao consentirem, mesmo que relutantemente, com esse experimento de choque cultural e publicidade (que passei a chamar de “Esverdeamento dos Rastafáris”), a frase parece irônica. Mas, quando mencionei isso a Tosh, ele pacientemente me explicou que o dinheiro da Babilônia não passava de mero papel, que se tornaria inútil quando o reino caísse.

“A César o que é de César, cara, e pra mim o que é meu”, diz ele, satisfeito por ter se saído com a frase exata. “Que eles fiquem com o maldito dinheiro de papel, cara. Papel tão barato que não serve nem pra enrolar um baseado!” A maconha nunca foi legalizada na Jamaica, mas ninguém no país se importava muito com os rastas e seu fumo até rumores de “um culto à violência” desencadearem uma campanha de ameaças da polícia que permanece até hoje.

“Então disseram que o nosso povo era violento”, continua Tosh. “Mas eles ignoram quando um deles bate seu carro em um ônibus de escola e mata as crianças dentro dele. Eles acham que é a gente que mata, mas são eles quem matam na loucura da bebedeira! É, cara! O nosso povo não mata… ele só afia a lâmina, afia e pule enquanto pensa na vingança… então ele fuma outro baseado e se sente bem e dorme e esquece de cometer o crime!”

Então um novo rosto apareceu na porta, inspirando o ar com falsa suspeita: “Nossa, cara, que cheiro é esse?”

Os outros do lado de fora deviam estar esperando a piada interna de hippies sobre o ar permeado de maconha na sala, até que o outro responde:

“Cara, tem cheiro de Am-ur-i-ca aqui!”

Somente depois que me dei conta de que os rastas e sua música existem sob uma pesada sensação de anestesia e que a violência do reggae (como tudo o mais na Jamaica, do serviço de quarto às entrevistas com Bob Marley) parece estar na base do estar por vir é que pude entender como tanta revolta social podia coexistir com o ritmo sincopado do reggae. A disparidade pareceu ainda mais perturbadora quando cheguei à Babilônia e vi pela primeira vez do que se tratava toda essa revolta amortecida e amordaçada.

“É aqui que chamam de Trench Town?”, perguntei ao motorista de táxi, botando a cabeça na janela para ver a infinita profusão de barracos. “Nããão, cara”, respondeu ele, desviando de um bode. “Trench Town é lugar ruim. É no gueto.”

Infelizmente, não consegui notar a diferença. Porque nem mesmo os protestos mais estridentes de Marley, Tosh e outros cantores de reggae, ou mesmo o filme cult do gênero, Balada Sangrenta (The Harder They Come, de 1972, estrelado por Jimmy Cliff), me prepararam para a miséria absoluta que vi ao longo daqueles caminhos estreitos, onde negros caribenhos mal encarados permaneciam parados nas esquinas de Catfish Row, do lado de fora de espeluncas com anúncios de cerveja descascados pendurados nas fachadas. Nada que eu havia visto antes fazia justiça ao lugar. Percebi isso observando a grande quantidade de crianças vestidas com menos que trapos, os bracinhos aracnídeos e as barrigas inchadas, se amontoando nos abrigos, vendo todas as minhas preconcepções de turista serem destruídas por aquela rua de amarguras.

Então, meu ânimo voltou momentaneamente quando vi o primeiro rastafári de verdade passar veloz em uma moto, os dreads esvoaçantes. Meu motorista achou o espetáculo bem menos excitante. “Bloodcot!”, cuspiu (uma ofensa segregária relacionada à menstruação – provavelmente a pior coisa que pode ser dita a alguém na Jamaica). “Como o inseto que ataca a plantação, esses bloodcots com seus dreadlocks são uma praga pra esta ilha… não, cara, eles não são devotos de verdade, que deixam os dreads crescer por motivos puramente religiosos, como eles dizem que são. São bandidos que usam dreads para causar medo nas pessoas. Meu conselho para você é que fique longe desses malditos bloodcots, que se dizem rastas, cara. Esses assassinos racistas que atacam os turistas e as pessoas.”

Lembrei-me da advertência dele algumas noites depois, quando um cara chamado “Killy”, que toca conga no grupo The Sons of Negus, veio pegar a mim e alguns outros “filhos da Babilônia” para uma celebração religiosa rasta conhecida como Grounation.

A Grounation acontece em Olympic Gardens, um subúrbio composto de favelas e prédios decrépitos não muito longe de Trench Town, com fogueiras, gritarias e cachorros latindo. O cheiro de suor e ganja podia ser sentido em todo lugar, enquanto o povo circulava pelas sujas vielas entre os barracos e desembocava em um salão pentecostal não muito maior que os outros em volta.

A sala estava abarrotada de gente, e a cena toda parecia algo saído de uma alucinação vudu. Eles dançavam, fantasmas fluidos sob a luz de uma única vela queimando sobre um altar improvisado e ao lado de uma Bíblia castigada pelo tempo. Killy tomou seu lugar ao lado de outros músicos, que já batucavam. Eles acompanhavam o veterano cantor de reggae Ras Michael, um homem barbudo e com cara de bode, que suava em profusão vestido em um suéter grosso enquanto cantava uma música chamada “In Zion”. Era o tipo mais básico e não comercial de reggae – sem adornos, em estado bruto. O fervor religioso alcançou o auge quando Michael começou “Old Marcus Garvey” – canção que fez sucesso através de um outro artista local, Burning Spear.

De repente, vários soldados apareceram na entrada do lugar. Mesmo assim, os baseados e a música continuaram rolando, enquanto Ras Michael apontava sua canção para os intrusos como se fosse uma lança. Com a cara azeda típica dos estraga-prazeres, os oficiais pareciam se desfazer em meio às sombras do lado de fora, como espíritos banidos pelo desprezo coletivo ou pelo talismã de um feiticeiro tribal.

A batida dos tambores se elevou triunfante e as pessoas se ergueram dos bancos toscos, os pés descalços batendo ritmados no chão descalço. Mulheres de rosto redondo, com baseados iluminando seu sorriso de dentes dourados, balançavam os quadris em perfeita ondulação, enquanto velhos rastamen, barbudos e rabínicos (os dreadlocks brancos ainda cheios de energia) executavam coreografias cheias de malícia e crianças com idade suficiente sequer para andar saltitavam ao redor dos pés do músico em ritmo perfeito de reggae. Enquanto isso, um bando de garotos dava risinhos enquanto olhava pela janela um fotógrafo branco dançando em espasmos, como alguém vítima dos efeitos do ácido.

“A música nativa tem uma magia poderosa, cara, que expulsa os exércitos da Babilônia e os deixa com vergonha de ter invadido nossos limites”, Michael explicou, enquanto tomávamos a sopa do ritual, feita de bode e ervas aromáticas dentro de um caldeirão negro. “Por que os soldados vêm aqui? Pra que vir onde a gente é pacífica e toca para louvar a Jah? Eles se sentem idiotas e envergonhados por vir até o território rasta perturbar a pacífica Grounation…”

Quando nos encontramos pela primeira vez, Bob Marley estava sentado em uma das janelas do andar de cima de sua casa em Hope Road fumando um inevitável baseado e observando interessado a copa das árvores tropicais, imerso na meditação da erva. De fato, Marley estava tão chapado que seria possível observá-lo por um bom tempo até que ele percebesse que tinha companhia.

Na chegada, a primeira coisa que se percebe é o BMW cinza-prateado estacionado. A segunda é que a casa está só parcialmente pintada – como se os pintores, ao fazerem um intervalo para fumar um, tivessem ficado tão fascinados em como o tom quase psicodélico do rosa-choque refletia a luz do próprio Jah que se esqueceram de terminar o serviço.

Hope Road é uma rua relativamente próspera de casas classe média que ficam a um passo de distância de algumas das piores favelas do mundo ocidental. Hope House, cercada por um enorme e descuidado quintal de gramas altas e dotada de várias casas menores nos fundos (uma delas atualmente sendo convertida em estúdio), ainda tem ares de palácio para os padrões locais. O lugar tem a combinação de rebeldia justificada e esplendor real de popstar, mas as paredes das salas quase sem mobília apresentam a rispidez do cáqui, tons viscerais de rubro e o mostarda do nacionalismo negro.

Parece claro que Marley nos viu chegando. Enquanto está lá sentado, parecendo com Che Guevara (seus celebrados dreads abrigados dentro de uma boina tamanho família), quem olha de fora só pode tentar imaginar que tipos de assuntos importantes o preocupam no momento. Agora que até a revista Time o reconhece como “uma força política capaz de rivalizar o governo”, talvez esteja considerando a não tão remota possibilidade de atacar a central do governo geral, situado a menos de 1 milha de Hope Road. Isso pelo menos justificaria o silêncio intenso que paira sobre a casa, fazendo com que pareça um acampamento guerrilheiro. Dado o caráter único de sua posição, entretanto, pode ser que esteja calculando o efeito que as próximas eleições parlamentares em Kingston podem ter sobre as vendas de seu último single, uma declaração política chamada “Rat Race”.

Independentemente de qual hipótese é a mais correta, Marley franze o cenho como um general cujas meditações vitais foram interrompidas quando percebe três mercenários brancos da Babilônia parados à sua porta. Ele desce e nos guia até o quintal, onde havia concordado em posar – provocante como qualquer estrela de primeira grandeza – se esticando sobre o capô de seu BMW. Talvez esse ar orgulhoso e imperialista tenha sido herdado de seu pai, que dizem ter sido um oficial branco das forças britânicas.

Qualquer um que se atreva a questionar por que o herói de uma cultura justificadamente rebelde e não materialista tem um carro como aquele recebe em troca uma pérola da lógica rasta: BMW é a abreviação de “Bob Marley and the Wailers”. E por que se submeter a tantas sessões de fotos? “Vou te falar”, diz Marley, “se os discos venderem na mesma quantidade das fotos – ótimo! Já tiraram mais de dois milhões!”

Não que isso signifique que Marley deu para trás em suas convicções ou algo assim. Stu Weintraub, agente norte-americano de Marley e responsável por sua agenda de shows, me contou que houve muita negociação até que ele e sua banda resolvessem tocar nos Estados Unidos.

“A cada duas semanas, um emissário vinha da Jamaica para me dizer que o negócio estava confirmado ou cancelado de novo. As conversas demoraram tanto que quando finalmente encontrei Bob, quando ele apareceu em meu escritório em Nova York, eu disse: ‘Então você é de verdade mesmo! Já estava começando a ter minhas dúvidas!'”

Logo de cara, Weintraub se recusou a colocar Bob Marley and The Wailers como banda de abertura – mesmo que fosse para os Rolling Stones, que ofereceram a oportunidade de ouro para expandir o culto ao jamaicano quando pediram que o Bob abrisse os shows do grupo em sua última turnê. “É claro que eu fiquei com aquilo na cabeça. Como alguém recusa uma chance dessas e não fica pensando a respeito? Mas eu sentia que, embora pouca gente conhecesse Bob Marley no momento, ele já estava no caminho para o estrelato… e estrelas não abrem shows, são a atração principal.”

Weintraub disse que se convenceu de que estava certo o tempo todo quando o público da turnê americana mais recente ultrapassou suas próprias expectativas.

“Poderíamos facilmente ter lotado estádios enormes, do porte do Madison Square Garden”, ele conta. “Mas, em vez disso, preferi colocá-lo em lugares de porte médio, em shows mais intimistas, onde ele pudesse ser visto exatamente como é – um homem profundamente religioso espalhando uma mensagem profundamente religiosa.”

O próprio Marley lhe dirá que aceita as invasões de privacidade dos repórteres estrangeiros muito mais para espalhar a palavra rastafári do que por ganho pessoal.

“A maior parte do tempo só vejo meus irmãos, minha família”, diz ele fazendo um gesto amplo com o braço, como se tentando abraçar a família à sua volta, seu filho de 5 anos Robbie, brincando com um carrinho no quintal, e uma linda morena fumando um baseado como se fosse um cigarro slim, olhando pensativa pela janela onde vimos Marley pela primeira vez.

“A maior parte do tempo não vejo ninguém além deles, e só fico aqui com minha música e meditação, cara. Mas às vezes gosto de falar com os escribas porque eles são meio lerdos pra entender a mensagem, cara. Às vezes é bom falar, porque dá uma clareada no ar… entende?”

Embora a comunicação seja difícil por causa de seu forte sotaque e piore ainda mais graças ao uso de expressões exóticas do rastafári como “I and I” (literalmente “eu e eu”, que pode ser confundida com “me and mine” ou “me myself and I”, até que alguém informa o desavisado que a frase quer dizer “you and I” ou toda “eumanidade”), Marley parece muito interessado em expor sua mensagem por trás de sua música.

“A única coisa de que não gosto é quando entendem errado a mensagem, cara”, Bob declara, deitando sobre o capô da BMW enquanto bate a cinza de um baseado do tamanho de um charuto.

“Tenho que rir quando dizem ou escrevem que sou como Mick Jagger ou algum outro superstar do tipo… Eles têm que ouvir melhor a música porque a mensagem não é a mesma… Não, cara, o reggae não é o twist!”

A ideia de que alguém poderia possivelmente confundir Jagger e Marley parece ao mesmo tempo irritá-lo e diverti-lo, o que faz sentido; porque a mensagem do reggae roots é um grito raivoso que passa muito longe da futilidade do som de Chubby Checker e outros. Mas também é verdade que as origens dessa híbrida música do gueto têm muito a ver com certas incongruências deliciosas do pop, como James Brown uivando das caixas de som colocadas no alto das palmeiras. É um processo semelhante ao que os ritmos africanos e uma miríade de seitas fanáticas fundamentalistas sofreram ao receberem influências de fontes tão díspares quanto o cristianismo e o vudu. Bob já absorvia elementos do mainstream quando criou, em seu terceiro LP lançado nos Estados Unidos, um herói popular chamado “Natty Dread”. Além disso, sua mãe jamaicana se naturalizou norte-americana e tem uma loja de discos em Wilmington (Delaware). É dito que o próprio Bob passou dois anos lá com ela, trabalhando na linha de montagem da Chrysler, antes de voltar para sua ilha no fim dos anos 60, para fugir da convocação para a Guerra do Vietnã.

Quando menciono esse período, Marley resmunga sobre como “tudo é rápido demais e as pessoas têm trabalho demais e muita preocupação” nos Estados Unidos. E, quando peço para confirmar dados mais específicos, seu sotaque se torna tão forte e enrolado que chega a soar como outro idioma. Como último recurso, ele evoca o privilégio inalienável de todo rasta de respeito e retorna ao seu estado de semicoma, olhando vagamente para o vazio e transcendendo completamente além da minha presença. A relutância de Marley em discutir o tempo que passou em Wilmington parece tão lógica quanto a de Bob Dylan em discutir seu período escolar em Minnesota.

O mito precisa ser protegido, principalmente agora que alguns puristas do reggae têm reclamado que seu último LP lançado na América, Rastaman Vibration, parece notadamente menos roots e talvez com uma pitada um tanto forte demais de rock. Mas, de acordo com o pessoal da Island Records, as vendas vão bem e já superaram a dos três discos anteriores juntas. E Bob continua subindo nas paradas, impulsionado por sua turnê mais recente. Muitos desses detratores ainda não parecem preparados para relegar Bob Marley ao limbo comercial em que Jimmy Cliff, o primeiro cantor de reggae a se tornar conhecido nos Estados Unidos, foi arremessado. Mas os críticos agora apontam para Burning Spear, um cantor calcado nos cantos africanos, como a opção para quem quer ouvir reggae roots de verdade em sua forma mais rude e crua.

Como os puristas do folk, que chamaram Bob Dylan de vendido quando o cantor passou a tocar guitarra, esses críticos ignoram o fato de que Marley, assim como Dylan, transcendeu o gênero de sua música – de que ele talvez tenha até transcendido o conceito de roots. Basta vê-lo no palco, dançando sem parar, os dreadlocks rodando, para perceber que se trata de uma estrela do rock.

Ainda assim, Marley parece genuinamente comprometido com sua fé, e, quando fala sobre a peregrinação que pretende fazer até a Etiópia, fica claro que seu coração pertence mesmo a essa Meca mítica. “Meu sonho, cara, e de todo rastaman, é voar para a Etiópia e deixar a Babilônia, onde os políticos não deixam os meus irmãos serem livres e viverem do modo que é seu por direito. Por isso vou comprar terras por lá para viver com minha família, cara. Porque a Babilônia precisa cair. Tanta maldade precisa acabar, mas quando? Eu e meus irmãos não queremos esperar mais, porque Jah nos diz pra voltar pra casa, pra nossa Etiópia e deixar que a Babilônia pereça sob seu próprio mal, cara. Não sei por que… mas é assim que tem que ser.” Considerando que fica difícil para alguém de fora discutir a lógica “preto-no-branco” da doutrina rasta, ficamos ponderando em silêncio solene sobre o que foi dito, olhando o sol se pôr no quintal, onde vários irmãos de Marley permaneciam parados em um estado enervante de animação suspensa. E enquanto Marley parece ter feito as pazes com a contradição que representa ser o reverenciado porta-voz de uma seita religiosa nativa jamaicana e um produto vendido nas fervilhantes arenas do mundo, os membros da extensão de sua família, silenciosos e cheios de desprezo, com seus impenetráveis olhos amendoados, começam a parecer menos hospitaleiros. Talvez eles não queiram espantar ninguém – afinal, Bob é o passaporte de todos para a terra prometida e sua vontade é claramente a lei maior por aqui.

Então, Bob se anima por um instante: “Vai levar anos, cara, e talvez algum derramamento de sangue, mas a bondade e a justiça vão prevalecer. Eu sei, cara, porque quando toco fora da Jamaica, por todo o mundo, vejo irmãos de dreadlocks em todo lugar… Crescendo fortes como a erva no campo… É, cara, me alegra o coração ver os dreadlocks em todo lugar. É o futuro, cara”.

Ele não acredita que o fato de algum garoto resolver usar dreads para imitar o ídolo Bob Marley e não para seguir os preceitos da religião rastafári possa comprometer sua mensagem e transformar sua fé em um tipo de moda passageira (“como o twist”).

“É bom, cara”, insiste. “Porque é um começo. Primeiro eles deixam dreads crescerem e logo estarão entendendo a mensagem.”

Quando o lembro de como os hippies acharam que bastava deixar o cabelo crescer e fumar maconha para mudar o mundo, e que hoje em dia é normal ver policiais de cabelo comprido, Bob insiste que a analogia não se aplica.

“Você nunca vai ver um policial de dread, cara”, diz ele, incomodado com a simples menção da ideia.

“É o que eu digo na minha música nova, ‘Rat Race’: ‘Rastaman não trabalha pra CIA’… Nunca vai acontecer, cara, porque os rastamen não são como os hippies. Eles resistem faz tempo, e os hippies não resistiram. Eles deviam ter aguentado mais cinco anos, até nós aparecermos. E aí os hippies seriam rastamen também! Cara, olha você: tem barba e seu cabelo parece dread!”

É, o homem não deixa de ter senso de humor.

Mas a simpatia de Bob Marley vai embora quando um fotógrafo pede que ele pose em outra parte do quintal, onde ainda há um pouco de luz natural. Ele se recusa, seco, dizendo que se querem que ele vá para outro lugar, que voltem outro dia. Ao mesmo tempo que seu ultimato parece menos um capricho de prima-dona e mais um sintoma honesto de preguiça, acaba servindo para aumentar ainda mais a tensão do momento, enquanto a sombra dos dreadlocks de seus companheiros se alonga pela grama, fazendo com que a distância entre nós pareça tão vasta quanto a Etiópia.

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