Por que só tem uma cidade na Bahia com nome e sobrenome de mulher?
Em 417 municípios, tirando nomes religiosos, apenas Amélia Rodrigues homenageia uma figura feminina em todo estado
Muito embora seja um dos poucos estados do Brasil com pronúncia feminina, a Bahia tem apenas uma cidade, entre seus 417 municípios, que homenageia uma mulher com nome e sobrenome.
Entre homens, abundam citações compostas a figuras destacadas, enaltecidas como heroicas ou de grande valor político e cultural: Lauro de Freitas, Simões Filho, Coronel João Sá, Miguel Calmon, Luís Eduardo Magalhães, Nilo Peçanha, Dário Meira, Cândido Sales, Elísio Medrado, Aurelino Leal, Licínio de Almeida, Wenceslau Guimarães, Paulo Afonso, Cardeal da Silva, Ruy Barbosa, Érico Cardoso, Euclydes da Cunha, Castro Alves.
Somente os ícones religiosos femininos conseguem ter livre trânsito para serem aprovadas nas Casas Legislativas, puxando uma resma de mulheres beatificadas e canonizadas pela Cúria Romana. Santa Bárbara, Santa Brígida, Santa Luzia, Santa Inês, Santa Teresinha, Santa Rita de Cássia, Santana, Santanópolis.
Quando não, a referência é direta à imaculada Santa Maria, em seus mais diversos epítetos. A Bahia tem quatro cidades com nomes de ‘Conceição’ (da Feira, do Almeida, do Coité e do Jacuípe). O título católico remete à concepção da virgem, despossuída do pecado original e agraciada pelo Espírito Santo para carregar o filho de Deus no ventre.
Outras quatro cidades baianas trazem referências diretas à mãe de Jesus: Madre de Deus, Livramento de Nossa Senhora, Coração de Maria e Santa Maria da Vitória. Em alguns casos, a citação é indireta, como Candeias (Nossa Senhora das Candeias) ou Campo Alegre de Lourdes (uma menção à Nossa Senhora de Lourdes).
“Tudo que vem do corpo é tido como imoral, então, a santidade de uma mulher casta é valorizada como algo sublime. Nossos dois grandes exemplos femininos bíblicos são Maria, mãe de Jesus, pura e casta, e Maria Madalena, prostituta. É um recorte que coloca que, se a mulher estiver fora de um padrão de pureza, caminha por uma visão da promiscuidade e isso é mal-visto e não valorizado”, analisa a professora de história Carolina Ledoux.
Esse machismo deslavado de quase sempre escolher apenas mulheres castas, bem-aventuradas e milagreiras para consagrar povoamentos, vilas e freguesias escapa a uma única exceção em todo estado.
A única
Desmembrada da costela de Santo Amaro, em 1961, a cidade de Amélia Rodrigues homenageia uma notável professora, escritora, teatróloga e poetisa brasileira, que durante 65 anos de vida (1861-1926) defendeu a educação, as artes e ideais abolicionistas.
A professora, escritora, teatróloga e poetisa baiana Amélia Rodrigues, única ‘civil’ a batizar uma cidade no estado (Foto: Acervo IGHB) |
O também professor de história Rafael Dantas diz que, no começo da colonização, muitas cidades foram fundadas baseadas em nomes católicos ou geográficos. Nos séculos 18 e 19, passaram a valorizar nomes de governadores, prefeitos e pessoas da elite.
“Depois, houve um momento de passar a resguardar a história local. Se eram cidades de origem indígenas, o nome fazia link com palavras indígenas. Se tinha uma fundação portuguesa, buscava-se uma referência nesse sentido. A ausência de mulheres é porque a política e a história seguiam viés machista, de quem estava no poder. A exceção de Amélia Rodrigues é porque ela era uma figura de destaque, e isso teve um peso na sua escolha”, afirma.
A professora aposentada de história Sônia Brito, doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, destaca o machismo histórico como uma explicação para a falta de representatividade.
“A história e o poder têm sua constituição machista, construída por homens que usam seus sistemas para homenagear e referendar os próprios homens. Então, realmente, fora do ambiente religioso, mulheres que se destacaram nas ciências, nas artes ou na política são solenemente ignoradas e não recebem o mesmo tratamento”, comenta.
Sônia ainda destaca que a área da educação é um dos poucos ambientes profissionais nos quais as mulheres possuem um reconhecimento social validado.
“Um dos poucos ambientes que você encontra muitas homenagens a mulheres é em nome de escolas. Em fóruns, aeroportos, avenidas quase não tem. Por isso, realmente chama atenção que a única cidade com nome de mulher na Bahia seja de uma educadora”, pontua.
Para Carolina Ledoux, é importante pontuar que a escassez de homenagens não significa ausência de mulheres com uma biografia admirável.
“É um processo que vem desde a Grécia Antiga, no qual o espaço público é o espaço dos homens e o ambiente privado das mulheres. No Brasil Colonial, no Império e até na Primeira República as mulheres brasileiras estiveram à margem das grandes decisões e, ainda assim, muitas delas tiveram posições fundamentais no processo histórico. É o caso de Maria Leopoldina, esposa de Dom Pedro, que assinou o documento da Independência do Brasil, mas não tem seu nome destacado, pela opção da invisibilidade”, sustenta.
Cidade trans
Em meio a tantas ausências femininas, um bom exemplo é a cidade de Glória, no nordeste da Bahia, na divisa entre Pernambuco e Alagoas. É um curioso caso de uma ‘cidade trans’.
Nasceu Santo Antônio de Glória, em 1886. Em 1931, depois de dias de lutas e um decreto estadual, passou a se chamar só Glória.
[Essa coluna é dedicada a Liliane Neves, que primeiro me indagou sobre esse assunto das cidades e me forçou a tentar investigar a história].
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