Kaspar

Mais que uma Carta

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso"! Diríamos que com o fétido Riacho Salgadinho só seria possível divagar em pensamentos de amor com flores de lírio plantadas ao redor. O girassol filosofa à procura dos urubus que com suas línguas pretas repetem em silêncio… Tempo, tempo, tempo, é um dos deuses mais lindos. Passam carros, passam boiadas e os ouvidos do eleitor pedem licença, precisam trafegar por sob as pontes da “Cidade Sorriso"

Chegou um dia à Praça Sinimbu, no litoral alagoano, um jovem adolescente com um envelope à mão. Preciso votar! Assim como fez seu pai, procurou saber onde estavam os políticos. Estava com sorte. Levaram-no ao 3º andar do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) e um assessor administrativo pediu-lhe para abrir o envelope sem selo. Ele amassou o papel e saiu em disparada para o meio da praça, onde estavam os desprovidos de terras. Encontrou madeiras e cordões e armou uma barraca.

Depois de um longo cochilo, acordou com uma bandeira na mão e cinqüenta reais na outra. Feliz, perambulou pela praça a agitar a bandeira. Girou a cabeça ao redor e pensou: apenas quero ser como meu pai. A cédula caiu no chão e ele colocou-a no bolso direito.

Andava elegante como um filho d’algo, corria bois e carruagens. Ouviu falar que por ali passaram bondes. Assim corriam seus dias, entre acampamentos e passeatas, acontecia o homem, de botinas e cabelo desgrenhados. Saltitava e bebia caldo de cana açúcar, escorregava no rela-rela da praça e, dentre sorrisos, assombros e múrmuros, encheu o largo com crianças, adolescentes e adultos a disputar em fila o brinquedo. Viveu ali a melhor parte dos seus dias. Com suas calças curtas e pele branca, passava despercebido dos guardas das praças. Queria ser como seu pai.

Certo dia, uma revoada de gralhas invadiu a praça. Foi até ao ponto de ônibus, resignado, tomou o Ponta Verde – Vergel em busca de algum mercado que vendesse macaxeira. Mastigava amendoins e uvas. Passou duas esquinas e pediu ao motorista que parasse. Por algum motivo importante deveria descer ali. O motorista atendeu-lhe. Comprou uma camisa azul e branca com um nome estampado e cinco estrelas. O Brasil havia perdido a última Copa do Mundo e por apenas nove reais e noventa centavos desfilou por entre as bancas de livros usados.

“Se fosse à época da ditadura, este homem estaria no paredão”, ouviu alguém dizer. Estaria ficando louco? Não via estrelas, não ouvia vovuzelas, nem mesmo havia usado drogas. Iria passar-se por um bom rapaz e ignorar os malditos cidadãos que o olhavam como jogadores de futebol. Seguia em frente até encontrar um pequeno hotel. Consultou a carteira, vazia. Lembrou que escondera a nota no bolso da comprida camisa. Entrou em um hotel e mostrou a nota reluzente. Quero ser como meu pai, repetiu. Deram-lhe um quarto no primeiro andar com vistas ao passeio. Pôs à mão nos bolsos e olhou o vai e vem na calçada. Zumbis, pensou Kaspar Hauser. Pôs a boca uma mão de uvas passas e adormeceu.

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