Reinaldo

Narcotráfico mostra as garras

A imprensa finge ou não vê como foi absurdo a polícia carioca hastear a bandeira do Brasil no alto da favela conquistada pela força das armas. O Complexo do Alemão deixara de ser parte do território brasileiro?

I

Nos enfrentamentos com as forças de segurança, do fim do mês de outubro para cá, o narcotráfico apenas pôs de fora um pedaço de suas unhas. Apesar de ter transformado a invasão-ocupação do Complexo do Alemão em espetáculo, a imprensa brasileira finge que não vê e deixa muitas perguntas sem respostas.

O saldo da guerra, até agora, foram cerca de 200 veículos incendiados, 120 pessoas presas e 15 presidiários transferidos de um presídio federal para outro, num processo de desarticulação das facções e endurecimento das ações do governo do Rio de Janeiro contra os traficantes. Além da apreensão de mais de 40 toneladas de maconha e 44 quilos de cocaína e ao redor de 200 armas e granadas.

Desta vez, as ações dos traficantes foram tão descentralizadas, que deixaram tontas as forças policiais. Se não fossem as forças armadas, a PM do Rio teria ido para o espaço.

II

Desacostumada às grandes coberturas, a imprensa brasileira acabou deixando muitas perguntas sem respostas:

1- Por que a invasão e ocupação ao Complexo do Alemão só ocorreu dois dias depois de os bandidos serem encurralados no Morro do Cruzeiro?

2- Por que, ao invés de 2.800 homens, as três forças armadas não colocaram um mínimo de dez mil homens para fazer a varredura de casa em casa no dia da invasão-ocupação?

3- Por que se tentou negociar a invasão-ocupação um dia antes dela acontecer?
Se não fosse a presença dos blindados da Marinha brasileira, a PM carioca teria tomado uma lição inesquecível: ao invés de os bandidos saírem correndo de um morro para escapar noutro, teria sido o inverso: os policiais correriam a se esconder em casa ou fora do Rio, o que faria a população clamar por uma intervenção política do Governo Federal no Estado. Mas, graças à bravura dos seus homens, as forças de segurança do Rio salvaram a pele política do governador Sergio Cabral.

III

Na historia do narcotráfico mundial, tudo relacionado ao mercado de drogas é tratado sempre à flor da pele, ou melhor, como no fio de uma navalha. Isso porque o mercado de drogas, se ainda não é o primeiro, caminha para ser o maior em movimentação de recursos financeiros no planeta.

O Brasil entrou definitivamente na rota internacional de drogas pesadas (heroína, cocaína) no começo da década de 1970, quando prisão no Rio do tesoureiro da máfia siciliana, Dom Tomazo Buscetta (ver o romance-reportagem do autor O Voo do Gafanhoto ),o que mostrou a inclusão do país na rota o narcotráfico internacional.

Graças à expansão econômica do Brasil da década de 70 para cá, e à falta de uma contínua educação política do país, seguida da negação a buscar sua identidade política-cultural, o consumo de drogas tem aumentado vertiginosamente, com o espantoso crescimento do exército de traficantes.

Por ser a capital cultural do país e o segundo Estado em potencial econômico, com a classe média mais sólida, o Rio de Janeiro se tornou a área mais apropriada para o desenvolvimento do projeto do narcotráfico. A expansão de favelas com infraestruturas deficientes é o ambiente propício à marginalidade, o ponto de partida do narcotráfico.

O governador Sergio Cabral visitou Cali, na Colômbia, há dois anos, para aprender como se faz política pública social antidroga. Entretanto, o florescimento de um ambiente favorável à droga no Rio de Janeiro não é de hoje nem de ontem. Não foi à toa a rejeição da proposta de liberalização da maconha encampada pelo candidato derrotado ao governo nas últimas eleições, Fernando Gabeira (PV).

A falta de ocupação nas favelas – lazer, esportes, escolas, teatros – traz o risco de transformar crianças em “gafanhotos” (olheiros) dos narcotraficantes. A troco de nada (ou simples lanches ou a dispensa do pagamento do aluguel da moradia dos pais), crianças observam o movimento de policiais nas favelas e passam a informação para as centrais do narco. Esse tipo de atividade começa cedo e vai até os 13,15 anos, a partir de quando, já rapazes, são encaminhados para outras tarefas, como Elias Maluco, o esquartejador do repórter Tim Lopes. Mesmo preso num presídio de segurança máxima, Maluco continua a liderar com toda pompa uma facção do narcotráfico do Rio. Ele já foi um gafanhoto.

IV

O jornalismo chapa branca da TV Globo insistiu na terça-feira, 30/10/2010, em falar no desaparecimento dos narcotraficantes e operadores do Complexo do Alemão como se a própria origem deles não fosse a própria favela, o morro, como se fossem pessoas de fora lá infiltradas: a hipocrisia foi outra deformação acrescentada à cobertura jornalística. Os jornalistas, inclusive os da TV Globo, têm obrigação de conhecer a história anterior dos assuntos sobre os quais falam. O espetáculo em que se transformou a ocupação parece que varreu a memória dos profissionais da emissora. Se depender do noticiário global, as novas gerações de profissionais da imprensa poderão pensar que esses narcotraficantes vieram de outro planeta.

Em geral, as imagens dos morros mostram os traficantes e seus apoiadores portando armas e granadas. Cabe observar:

1- São milhares de bandidos a serviço do narcotráfico e não apenas meia dúzia como o governo fazia crer antes; 2- A extensão das facções é bem maior do que os governos federal e estadual supõem; 3- o governo estadual está completamente despreparado para esse tipo de guerra urbana (e isso se viu quando a própria TV Globo mostrou do helicóptero os locais onde se concentravam os bandidos, e a PM observava tudo sem fazer absolutamente nada, nem se aproximava dos locais).

V

A história do combate ao narcotráfico é coberta de traições, covardias, denúncias e corrupção. A famosíssima Operação Mãos Limpas desenvolvida pela justiça italiana na década de 70, através da qual os principais mafiosos da Sicília foram apanhados e julgados dentro da própria cadeia, onde já estavam os presidiários mafiosos. Caso contrário a polícia não conseguiria mantê-los sob sua guarda nos tribunais vulneráveis.

No Rio, quando as forças armadas se reuniram para fazer a limpeza no Complexo do Alemão
levavam a certeza de que, além da apreensão de uma grande quantidade de material bélico e de drogas, conseguiriam prender centenas de traficantes e seus operadores. Como? Todos eles deixaram a favela da noite anterior para a madrugada seguinte, largando para trás todo o material de “trabalho”.

Óbvio: alguém infiltrado nas forças do governo “cantou” (dedurou) a invasão com antecedência, soando um aviso geral. De repente, os criminosos sumiram da área. Os comandantes da ação policial tiveram, então, mais uma grande surpresa: não encontraram nenhum dos principais chefes do narcotráfico na área, antes mergulhados em uma população superior a 400 mil moradores.

VI

Mesmo assim, num gesto simbólico, policiais fixaram uma bandeira do Brasil e do Rio de Janeiro no alto do Complexo do Alemão. Exclamação natural: tanta zoada para nada! Os bandidos fugiram do Alemão, mas vão ressurgir em outro lugar, disso ninguém duvida. Porque os prejuízos materiais causados pela operação (armas e drogas) serão em pouco tempo recuperados. É só aguardar.

Em sua cobertura chapa branca, na revista dominical “Fantástico”, a TV Globo, após exibir como um troféu a prisão do traficante Zeu, um dos matadores do repórter Tim Lopes, admitiu que os bandidos que não fugiram ainda estavam escondidos no morro. Por jornalismo chapa branca se entende aquele tipo de cobertura onde só se divulga a versão de um lado. Em casa o telespectador perguntava: que operação é essa que deixa os bandidos fugir? Ou que varredura é essa que não encontra os bandidos?

VII

Como as forças armadas e a polícia do Rio não têm data para concluir a operação no Complexo do Alemão, não estão descartadas novas reações dos narcotraficantes, já que nem os armamentos nem a quantidade de drogas apreendidas representam sequer a metade do arsenal do conjunto de facções do Comando Vermelho. De qualquer modo não pareceu estar na estratégia do narcotráfico o final sangrento para o confronto iniciado com os incêndios dos veículos. Se a desestabilização das forças de segurança do governo com a tática da descentralização das ações dos narcotraficantes, o recuo no momento do enfrentamento mostrou que as ações do narcotráfico são pensadas e planejadas.

Por outro lado, o noticiário basicamente conduzido pela TV Globo trouxe a informação (sonegada nos dias anteriores) que grupos de policiais haviam invadido casas comerciais e residenciais no Complexo do Alemão, e embolsado maços de dinheiro de comerciantes e moradores sem lhes dar qualquer satisfação. Depois, comandantes e portavozes prometeram colocar ouvidorias nos morros para receber reclamações.

VIII

E agora? É o que a população pergunta. Uma aparente paz começou a reinar no Rio de Janeiro. Chegarão às favelas os serviços de saúde, educação, moradia e segurança que a população precisa? Ou apenas predominará essa esperança de paz? A mudança total no modo de vida de uma população oprimida pelo narcotráfico durante mais de meio século vai exigir que tanto os governos estadual e federal modifiquem por completo seu modo de tratar as populações periféricas das grandes cidades. Se isso não acontecer, o narcotráfico normalmente se reinstalará em qualquer lugar de onde for expulso. Não deve ser esquecido que a maior parte dos consumidores de drogas está nas classes médias e altas, não se constituindo propriamente de moradores dos morros e favelas das cidades.

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