Adelmo Afonso

Didática do professor

Costumava sentar-se à porta, numa cadeira de balanço, para ler a bíblia em inglês. Gabava-se ser um dos poucos a conseguir tal façanha. “Faço isso por puro deleite e que Deus me perdoe, porque fé eu não tenho”.
Chamava-se Domário, conhecido como “o professor”. Profissão: guarda-livros, ofício que exercia desde moço, escriturando livros de contabilidade de pequenos comerciantes, instruindo-os a burlarem o fisco.
Contava com décadas de experiência no ramo; sua intimidade e zelo na manipulação dos papéis eram admiráveis.
Pai de uma família numerosa, onerado por dívidas contraídas no baralho e nas mercearias, trabalhava dobrado para sustentar a prole que carregava como uma cruz.
Alcoólatra inveterado, raro dia em que não bebia, mesmo que fossem só umas “bicadas” para espalhar o sangue. Frequentemente era visto tomando pinga nas bodegas, cercado por gente desocupada, corroída pela aguardente e sem perspectivas no porvir, exceto um iminente final de vida.
Nesse ambiente estático e invariável, Domário enfronhava-se metido num paletó fuçado e deteriorado pelo uso contínuo, adepto dos suspensórios, falando alto e com superioridade a quem lhe desse ouvido: “How are you? Do you speak english?”
Em casa, comportava-se agressivamente, sobretudo quando estava embriagado. Na rua, junto aos amigos cachaceiros, pessoas humildes e de pouca instrução, gozava do conceito de homem bom e inteligente.
É fato que enlouqueceu uma filha após uma surra. A menina brincava de esconde-esconde com a irmã e resolveu entrar na ponta dos pés no quarto onde dormia o pai ressacado.
Inadvertidamente, chutou um penico cheio de urina que estava sobre o tapete, molhando Domário dos pés à cabeça. O pai acordou azoretado e com o coração dominado pela cólera.
Á pobre menina de olhar espantado, vendo-se diante do gigante, restou balbuciar desculpas que não foram ouvidas. A mãe não estava em casa, os irmãos, todos menores, marcados também pela truculência materna, nada puderam fazer.
Aterrorizada, a menina escapole refugiando-se no guarda-roupa, na inocente esperança de livrar-se do monstro ensandecido. Transfigurado e gritando como um louco, o pai apanhou uma tramela e aos gritos de “vai morrer, filha do cão”, destrói o frágil esconderijo.
Sob os escombros, desfalecida, Gina, como se chamava, livrou-se milagrosamente da morte, mas carregou para sempre irreversíveis sequelas. Desde então, nunca mais retornou ao mundo. Apagou o sorriso no rosto sardento e, absorta, quase não falava, e quando o fazia, pronunciava intraduzíveis monossílabos.
Como um adereço que cai em desuso, a menina foi recolhida a um quarto aos oito anos de idade, condenada a atravessar o resto da vida na penumbra.
Deliberadamente o pai não a encarava. Nem sequer lhe chamava pelo nome. Quando a ela referia-se, dizia: “a menina problemática”.

II

Tempos depois, Domário caiu doente. Com a saúde corroída pelos vícios, rendeu-se à ideia de aposentar-se.
O resultado dos exames clínicos abateu-lhe o ânimo, revelando que padecia de múltiplas complicações: cirrose hepática, úlceras abrindo-lhe erosões no aparelho digestivo e uma bronquite alimentada há anos pelo tabagismo.
Dona Nadir, além de não gostar do marido, pelava-se de medo. Submissa, não dava opinião quando ele estava por perto. Lamentava-se por ter errado na escolha casando com um estúpido.
Esconjurava-o pelas costas fazendo figa: “Que o diabo o carregue! Hei de me livrar um dia dessa peste”. Passavam-se meses sem que trocassem uma dúzia de palavras.
Uma penca de filhos lotava a pequena casa, e Domário não tolerava o barulho. Incomodado com o incessante ruge-ruge doméstico e com a agitação dos veículos na rua, que lhe desconcentrava na leitura, entupia os ouvidos com algodão e, à medida que avançava nos estudos, consumia reiterados cigarros em sôfregas baforadas.

III

Num sábado, ao nascer do sol, surpreendeu a família anunciando que ia pescar, mas que não tardaria. Garantiu, inclusive, que a mistura para o almoço daquele dia seria o produto do seu intento.
Ninguém imaginava haver ainda em Domário disposição para a prática desse seu antigo costume. Acreditava-se nunca mais vê-lo recobrar o equilíbrio, mas, naquele dia, sentia-se refeito após longo período de prostração no leito convalescente, encolhido, encolhido sob lençóis encardidos.
A barba por fazer, fazia tempo não tomava banho nem sentia bater na pele macilenta a luz do dia. Ao percebê-lo à porta manipulando os apetrechos da pesca, em vão os vizinhos tentaram dissuadi-lo do propósito.
Sua oposição em desistir do passeio mostrou-se irrevogável. Argumentou que precisava fazer um recreio, conversar com os seus camaradas nem que fosse um dedo de prosa, que carecia desopilar o juízo com o ar puro após o amargo padecimento, fazendo promessas que não cometeria extravagâncias.
Retornou à noite, bêbado, sem vara nem peixes. Com a pele tostada e o cabelo em desalinho, cambaleou direto para o quarto, jogando-se na cama onde urinou e vomitou a farra.
Despertou quando todos dormiam, ainda sob o efeito da bebida, exalando um bafo azedo que incensava o ambiente fechado.
Impulsionado por uma fome canina e abrasadora sede etílica, arrastou uma cadeira e foi sentar-se defronte à geladeira, com a porta escancarada, para saciar a voracidade do seu apetite.
Dando leves pancadas na barriga inchada, dizia: “Estou faminto”. “Deixe-me ver o que temos aqui”, e percorria com os olhos ávidos o que tinha à disposição.
“Os médicos que se danem! Se depender deles só vou comer folhas; como não sou lagarta…!” E de posse de uma colher, comeu desmedidamente de tudo e até onde não pôde.
Não admitia alimentar-se e continuar faminto. Após a comilança que o deixou empachado, apanhou um livro de auto-ajuda, estirou-se na rede emitindo grotescos arrotos e esperou concluir a digestão.
“Inacreditável!”, comentava sua esposa no dia seguinte com os vizinhos boquiabertos. “Era como se a comida não desse vencimento à sua gula”.
Naquela madrugada, após ser sacudido por uma crise de vômitos, ás pressas resguardou-se solitário no fundo do quintal escuro onde encenou, de joelhos, no canto do muro, o último espetáculo.
Morreu pela boca, que ao raiar do dia estava repleta de formigas. Ao enterro realizado no cemitério dos pobres, além da família, ninguém compareceu. Féretro inexpressivo.
Funeral sem choro. Nenhum sentimento de perda foi externado. Na capela onde rezaram missa e o defunto foi encomendado, só as velas derramaram lágrimas.
Dias depois, acompanhada apenas de Gina, dona Nadir retornou ao local para afixar no chão da cova, última morada do morto, uma modesta lápide com os dizeres: “Aqui jaz quem nunca deveria ter nascido”.
À saída, de mãos dadas com a mãe, Gina olhou para trás e, surpreendentemente, esboçou pela primeira vez, desde que havia ficado doente, um leve sorriso, incontestavelmente revelador.

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